Introdução à “ufologia científica”: aspectos metodológicos da investigação de seres extraterrestres
- Pedro Henrique Barbosa Borda
- 2 de set. de 2023
- 30 min de leitura
Resumo: Esse trabalho explora as relações entre a ufologia e a ciência, a partir da documentação das técnicas de investigação empregadas por esses pesquisadores na pesquisa da “casuística ufológica”. Dentro de um contexto de “ultra-ciência”, os ufólogos experimentam diferentes conexões com as figurações possíveis da prática científica para produzir uma metodologia que dê conta de explicar os seres extraterrestres e sua manifestação. Ademais, questionar os aspectos metodológicos da ufologia científica nos dá a oportunidade de investigar também qual a noção de “ciência” mobilizada por esses teóricos do fenômeno UFO.
Palavras-chave: metodologia científica; antropologia da ufologia; discurso científico
Introdução¹
Uma pesquisa de opinião realizada em 2019², nos Estados Unidos, revelou que pouco mais de 30% da população atribuía aos OVNIs (Objetos Voadores Não Identificados) uma origem extraterrestre, enquanto 60% afirmava ser possível explicá-los pela “criatividade humana” ou por “fenômenos naturais”. Os demais não souberam responder. É dentro dessa dicotomia entre um mundo de cá - da ordem do natural/social, explicável pela ciência - e um mundo de lá - da ordem do desconhecido, inexplicável por essa ciência mundana, natural -, que se desenham os debates centrais envolvendo a metodologia ufológica³. Ao mesmo tempo em que reiteram sua marginalização em relação à prática científica “oficial”, aquela instituída em universidades e grandes centros de pesquisa, os ufólogos defendem a possibilidade de produção de evidências sólidas, fruto de investigações rigorosas, que não só comprovariam a veracidade da “casuística ufológica” - termo nativo utilizado para denominar o conjunto de manifestações atribuídas à ação dos OVNIs e seus tripulantes sobre a Terra e os humanos -, como também permitiria acesso às motivações e ao padrão de ação desses seres. É, portanto, a partir daqui que eles tentam compreender lá, atuando nesse interstício entre as limitações de uma ciência mundana e os mundos desconhecidos, de onde viriam os alienígenas, tentando a cada momento dar conta de superar as eventuais restrições da ciência moderna, embora essa tarefa exija dos ufólogos uma reformulação da prática científica. Em ufologia, então, trata-se de uma outra “ciência”, mas nem por isso menos rigorosa, como o termo “pseudociência”, em seu sentido pejorativo, faz parecer.
Os ufólogos atuariam, desta feita, sobre uma “ultra-natureza” (ALMEIDA, 2015), a partir da assunção de uma relação contígua entre o mundo de cá e o mundo de lá, considerando as eventuais diferenciações entre Nós e os ETs como produto de percursos evolutivos e de desenvolvimento tecnológico distintos: “Os óvnis e os extraterrestres, portanto, não habitam mais este domínio: sua fisiologia outra, seus corpos sem pelos e suas naves muito velozes não são uma adição à natureza, mas antes constituem o culminar de certa ultra-natureza” (Idem, p. 233). E para uma ultra-natureza, nada mais justo que uma outra ciência, uma ultra-ciência. Nessa nova ciência, como Almeida (2015) uma vez pontuou: “Tudo se passaria como se fosse necessário incorporar tudo, até porque, na perspectiva que os ufólogos adotam sobre a sua disciplina, quanto mais científica a ufologia, mais ela deveria estar aberta a análise de quaisquer fenômenos” (p. 222-3). Tal diagnóstico a respeito desse novo domínio, expansão da natureza, está intimamente relacionado às “operações de redução” colocadas em jogo pelo trabalho ufológico que, ainda conforme Rafael Almeida (2015), reduzem o “extraordinário” à ação alienígena sobre a Terra, não para encontrar aí alguma redução às regularidades naturais - como o termo poderia sugerir -, mas antes, para ativar certas “linhas de propagação”, engendrar novos modos de ação dos OVNIs e extraterrestres:
Insisto, se as operações de redução promovidas pelos ufólogos extirpam toda a substância do dito mundo "sobrenatural”, não o fazem para reduzir o mundo a um conjunto de regularidades, assim como não concorrem para afogar os mesmos relatos em categorias que buscam alcançar uma homogeneidade, como é a sugestão de que os reportes sobre as aparições de seres além Terra tem que ver com estados alterados de consciência ou com episódios de histeria coletiva. Ao reduzir o mundo à ação extraterrestre, da qual, inclusive os humanos podem não ser outra coisa senão produto ou experimento, os ufólogos concorrem para a multiplicação daqueles seres em termos das diferenças de seus tipos, de suas raças, de seus modos de existência (ALMEIDA, 2015, p. 234).
É por causa dessa espécie de revisão científica, em operação na pesquisa de OVNIs, que a socióloga Anne Cross (2004) identifica a relação estabelecida entre ufologia e ciência como ambivalente. Se, por um lado, a ufologia científica parece preocupada em efetivamente implementar uma metodologia rigorosa, baseada em cálculos, medições e dados, por outro lado, ela seria também uma espécie de crítica à ciência. Por meio da aplicação do que a autora chama de “retórica científica” ao estudo dos OVNIs, os ufólogos almejariam criar um conhecimento que, em última instância, asseguraria o acesso à “verdade última sobre o universo físico” (CROSS, 2004, p. 5). Ao contrário da objetividade desejada pelos cientistas, afirma Cross, esse tipo de retórica seria extremamente flexível, justamente o que permitiria aos ufólogos “emulá-la”, simulando uma preocupação metodológica semelhante a dos cientistas⁴.
Em contrapartida a isso⁵, penso que a ciência não funciona como simples retórica, mas representa a própria base a partir da qual o conhecimento ufológico é construído, e que uma investigação dos aspectos metodológicos empregados pelos ufólogos em seu trabalho nos permitiria acessar a noção de ciência mobilizada na metodologia ufológica. Suponho, portanto, que a “ciência” teria um efeito prático no modo como os ufólogos pensam, ou melhor, trazem à existência, seus discos voadores e extraterrestres. Desse modo, por meio do movimento inverso, isto é, da prática aos fundamentos - uma vez que Cross parece ir dos fundamentos aparentemente equivocados para condenar a ufologia -, o presente estudo propõe a investigação dessa “ciência” na ufologia.
Dito isso, são necessárias algumas palavras sobre a abordagem utilizada nesse estudo, influenciada diretamente por Bruno Latour,: a sociologia (ou antropologia) da ciência trabalhada por esse autor não propõe a existência de uma realidade anterior, cuja qual o trabalho científico seria responsável por revelar. Os fatos científicos, para ele, não são constatações de uma natureza transcendente e imutável, mas antes o produto cuidadoso e contínuo do engajamento e exercício de composição entre humanos e não-humanos, de forma que diversas associações possam ser construídas para dar a devida sustentação a esse ou aquele fato que, uma vez construído, parece deixar de lado toda sua trajetória marcada por desvios e controvérsias para aparecer, enfim, como “fato” - a noção de uma “caixa preta” do ofício científico. A verdade obtida desse processo seria sempre uma relativa, pois construída em relação a diversas outras entidades e fatos mais ou menos estabilizados. Ao sociólogo caberia acompanhar as condições de felicidade, o caráter de continuidade que permeia todos os saltos descontínuos presentes durante a produção de determinado conhecimento, que garantiriam, nesse caso, ao cientista, a prova da existência de determinada entidade e a garantia de verdade de um fato (LATOUR e WOOLGAR, 1986; LATOUR, 2001; LATOUR, 2019).
Assim, a questão não pode passar pela noção redutora de uma emulação da retórica, e sim pela avaliação da construção prática do conhecimento ufológico. Além disso, não se trata sequer de “emular” - i.e., imitar -, e sim de agenciar, deslocar esses elementos “científicos” para reposicioná-los em uma nova rede. Uma vez situados nessa nova rede, a tarefa do antropólogo seria a de encontrar a “chave de interpretação” por meio da qual pode melhor entender a trajetória de produção do conhecimento ufológico, seus aspectos metodológicos e, enfim, sua “ciência”.
1. A credibilidade
O primeiro aspecto que gostaria de destacar é a questão da credibilidade, que emerge com força a partir da elaboração do Relatório Condon (DEAN, 1998) - um documento assinado pela Universidade do Colorado, fruto de uma pesquisa financiada pelo governo norte-americano, no final da década de 1960, para investigar avistamentos de OVNIs⁶ -, pois se o fenômeno relatado não poderia ser “real”: ou os relatos eram equivocados, ou simplesmente mentiras bem elaboradas. A partir disso, a ufologia se delineia a partir de dois eixos principais: justificar a credibilidade dos contatados⁷ e também dos próprios investigadores. De acordo com Jodi Dean (1998), esse esforço de busca por credibilidade colocaria “ufólogos sérios” em uma tentativa de se distanciar de outros personagens, digamos, “menos sérios” dentro da ufologia⁸.
Já no Brasil, a situação parece um pouco mais complexa. De fato, observamos o esforço dos ufólogos em distinguir-se dos meros “entusiastas da ufologia”, como fica claro na passagem a seguir, extraída de um artigo do antigo editor da Revista UFO, Ademar Gevaerd, que faleceu em dezembro de 2022:
Hoje em dia, no entanto, passaram a ser considerados ufólogos pessoas que, sem se preocuparem com detalhes técnicos e práticos do fenômeno ufológico, gastam suas horas fazendo “investigações exclusivamente através da rede, o que não passa de mera garimpagem de informações. Muitas vezes, são jovens dedicados e profundos conhecedores de informática que, com interesse acima da média em Ufologia, montam suas páginas, ilustram brilhantemente seus sites e reproduzem material sobre o assunto. [...] Mas com o passar dos anos e o ingresso de novas levas de jovens no mundo Virtual da Ufologia, aqueles descritos no parágrafo anterior, que chegaram há mais tempo, mas que não passam de entusiastas e divulgadores cibernéticos do assunto, começaram a ser vistos como ufólogos e, sua atividade, como legítima ufologia (Revista UFO, n°85, p. 37 apud ALMEIDA, 2015, p. 230).
Entretanto, Rafael Almeida (2015) nos apresenta uma postura totalmente oposta por parte da UFO, em outra edição da revista, na qual reconhece a validade da ufologia realizada por aqueles que, agora, passavam a ser chamados de “analistas ufológicos”. Para entender essa aparente contradição, é preciso retomar o conceito do antropólogo, batizado de “linhas de propagação”, mobilizado para pensar a função da Revista UFO no meio ufológico brasileiro. Para tanto, o autor fala em uma “parcial visibilidade” dos discos-voadores e seres extraterrestres – o fato deles nunca se mostrarem completamente, mas sempre de modo parcial –, a qual seria responsável por ativar essas linhas de propagação que alimentam a continuidade da ufologia sob a produção de mais revistas, congressos, documentários e livros. Em outras palavras, quanto menos se vê, mais se há para ver e, a partir disso, a ufologia brasileira faz a manutenção da sua existência: “Em última análise são os óvnis, que quase sempre confinados na sua ‘visibilidade parcial’ para os humanos, aqueles que colocam em movimento as “linhas de propagação” da disciplina” (ALMEIDA, 2015, p. 207).
Ainda de acordo com o antropólogo, a Revista UFO seria um fator-chave para que se possa efetivamente falar em “comunidade ufológica brasileira”, uma vez que ela foi capaz de centralizar em torno de si uma gama de grupos e interesses ufológicos distintos, o que significou a continuidade das linhas de propagação da ufologia brasileira, que poderiam ter encontrado sua interrupção mediante a recusa pela aglutinação, por exemplo, da ufologia científica e a ufologia mística/espiritual a partir de uma opção pelo investimento nos métodos já canonizados da investigação ufológica, tais como a análise de vídeos, fotos, documentos e relatos. É preciso ter em mente, portanto, esse movimento tão importante para a continuidade da Revista UFO nesses trinta anos de existência – e mesmo da própria ufologia brasileira –, a “multiplicação de aliados” (ALMEIDA, 2015, p. 209 – 230). Quando falamos a respeito dos esforços de distinção dos ufólogos entre a “ufologia séria” e os entusiastas, é preciso estar atento a essas especificidades da ufologia brasileira, cuja influência das linhas de propagação ativadas pelos OVNIs e pela Revista UFO, engendra particularidades com relação ao contexto norte-americano.
Constatada essa diferença, é possível compreender com maior precisão de que forma a credibilidade do pesquisador entra em jogo no cenário da ufologia brasileira, pois, embora exista a necessidade de distanciamento com relação a ufologia espiritualista e outras práticas, a multiplicação de aliados operada pela Revista UFO constrói uma dinâmica ligeiramente distinta. No entanto, na ausência de um título reconhecido por uma instância oficial, como são os diplomas universitários, além de alguma maneira reconhecida de se aprender ufologia e também de ser reconhecido como ufólogo, a oficialização da ufologia não deixa de ser uma questão importante para muitos desses pesquisadores, como fica claro no depoimento de Ademar Gevaerd, a seguir. Sobre essa espécie de “profissionalização” do Ufólogo, seus comentários, durante a divulgação de um curso a respeito dos efeitos físicos dos OVNIs em nosso planeta são valiosos:
“Não passa um dia sequer sem que eu receba uma mensagem, um e-mail ou alguém me aborda na rua e me pergunta a pergunta clássica: “‘Geva’, eu quero ser ufólogo. Como eu faço para ser ufólogo?” Não temos faculdade de ufologia, como vocês sabem... Mas a Revista UFO deu um passo nesse sentido, criando a Academia Brasileira de Ufologia, que dá cursos sobre todos os temas relacionados aos discos-voadores e sua ação na Terra, sobre a presença de seres alienígenas em nosso planeta (...). Então, o que mais se aproxima de um curso de ufologia é o que a Revista UFO está fazendo através da Academia Brasileira de Ufologia”⁹.
É sintomático que a Revista UFO seja a primeira a dar um passo nesse sentido, tendo em vista que ela já detém boa parte da produção de conteúdo no país, publicando as principais obras literárias e organizando os cursos e congressos de maior alcance. Entretanto, nem todos ufólogos batem o martelo para o trabalho da Revista UFO, embora seja inegável a sua influência na ufologia brasileira. Essa dissonância ficou clara para mim ao observar o seguinte diálogo em um dos grupos oficiais da revista, na rede social Whatsapp, que teve início após um dos participantes compartilhar uma notícia publicada no site da própria UFO, que comentava uma polêmica envolvendo a gravação de um OVNI durante um programa ao vivo na TV aberta¹⁰:
W: ANÁLISE DO UFO DA BAND INDICA QUE O OBJETO ERA NA VERDADE UM AVIÃO
No dia 16 de fevereiro uma transmissão ao vivo do programa Brasil Urgente, apresentado por José Luiz Datena, mostrava imagens de uma tempestade que estava sobre a cidade de São Paulo. De repente, um objeto cruza as imagens da câmera de uma ponta a outra a uma grande velocidade. A partir de então começaram a surgir as teorias do que era aquele objeto. Um avião, um helicóptero... um disco voador?
R: Que borrão , totalmente diferente, pq não aceitam? Q diferença
D (representante da Revista UFO): Talvez por isso
R: E a velocidade do teco teco 2488km/h. Qual a desculpa?
D (representante da Revista UFO): Desculpa não R !
A velocidade do "teco teco" está diretamente ligada a aceleração dos frames do vídeo que foi editado para ser inserido no programa naquele horário !
A equipe da Revista fez uma exaustiva pesquisa sobre este vídeo . mas parece que os nossos peritos não lhe convenceram não é ?
Pode ter certeza que para nós da Revista UFO seria um privilégio concluir nossa análise determinando ser. Ufo aquele objeto, mas temos os pés no chão e não produzimos ou disseminamos o que não condiz com fatos reais após a pesquisa
Apesar de alguns participantes terem endossado a postura de R, reafirmando o caráter extraterrestre daquele borrão capturado pelas câmeras de TV, houve aqueles que se posicionaram ao lado da revista, elogiando a competência e o profissionalismo dos ufólogos que elaboraram esse diagnóstico acerca da imagem:
F: D (representante da Revista UFO) obrigado pelas análises e trabalhos
Confio no veredicto da análise e muito obrigado pelos esclarecimentos
Não era um ovni
Parecia bastante mas graças ao trabalho de vocês fomos esclarecidos
Muito obrigado
Em algumas situações, portanto, a credibilidade do ufólogo, no Brasil, depende da sua posição relativa dentro da própria comunidade ufológica e, nesse sentido, conta muito o seu currículo enquanto ufólogo: se você vai a campo investigar, se você escreve para a Revista UFO, se você produz livros ou documentários sobre o tema, por exemplo. No entanto, como vimos, a credibilidade ufológica não garante muita coisa, sem que haja realmente um trabalho de convencimento por parte do pesquisador. Uma constatação importante resulta dessa observação: existe efetivamente um trabalho de pesquisa e aglutinação de informações por parte do ufólogo, que permite descartar certas coisas como OVNIs verdadeiramente extraterrestres de meras “manchas na lente”, mas voltaremos a esse ponto adiante¹¹.
Além do currículo ufológico, o currículo acadêmico – isto é, a formação acadêmica, titulação reconhecida e experiência com trabalhos científicos – também conta muito para creditar um ufólogo enquanto um pesquisador com credibilidade na área. Nesse sentido, faz diferença se um ufólogo é formado em física, por exemplo, ou se ele não possui nenhuma graduação. Esse ponto fica mais claro durante essa entrevista, conduzida novamente pela Revista UFO, com Paulo Ianuzzi – ufólogo, mas também economista e físico, além de ter cursado biologia e astronomia –, quando o entrevistador faz questão de ressaltar que Ianuzzi atende às exigências da ufologia científica¹², ainda que o ufólogo ressalte: “Embora possa parecer exagero, por melhor que seja sua formação, ela sempre será insuficiente para a investigação completa do Fenômeno UFO, pois ele transcende questões meramente livrescas, informativas e intelectuais” (IANUZZI, 2013, p. 18), o que confirma a diferença já elencada com relação ao contexto estadunidense, sendo que a ufologia brasileira parece muito mais aberta às experimentações com outras formas de saber, que não o científico por meio de uma multiplicação dos aliados.
Em certos casos, contudo, o ufólogo não é o especialista, possuidor de alguma graduação relevante para aquela investigação. Diante dessas situações, caberia a ele buscar os profissionais qualificados e, aí, agir como uma espécie de mediador entre o que a ciência faz e o estudo dos discos-voadores. Afinal, como pontua Gevaerd: “A ufologia pode não ser uma ciência, como alegam aqueles que não reconhecem o assunto como merecedor de maior atenção. Mas constantemente emprega recursos estabelecidos e amplamente usados por variadas disciplinas científicas em seu trabalho” (GEVAERD (ed.), 2006, p. 85).
Nesse sentido, o ufólogo Bob Hastings (2013) propõe que as descobertas e pressupostos científicos sirvam como um alicerce a partir do qual a possibilidade das hipóteses a respeito do Fenômeno UFO poderiam ser minimamente contrastadas, o que ele chama de situações “cientificamente viáveis”. Por exemplo, em um debate a respeito da possibilidade ou não dos ETs viajarem mais rápido que a luz em suas espaçonaves, ele nos indica o seguinte:
“Em termos simples, a viagem mais rápida do que a luz ou FTL [do inglês, faster than light] é considerada possível hoje por muitos teóricos. Se isso for verificado, será cientificamente viável argumentar que os ETs talvez venham de pontos distantes de nossa galáxia, ou até outras” (p. 37).
Situação similar pode ser encontrada em outro momento nesse mesmo artigo, em uma discussão sobre a origem da vida, a partir da qual tenta-se estimar a probabilidade de existência de seres extraterrestres: “De acordo com nosso atual nível de conhecimento científico, qual é o número aproximado de civilizações avançadas potencialmente capazes de realizar viagens espaciais dentro desse vasto aglomerado circular de estrelas, planetas e gás interestelar?” (p. 39). Apesar dos resultados surpreendentes, o autor ressalta que esse cálculo não ajuda na estimativa de quantas espécies de fato estão operando ao nosso redor, evidenciando o quanto é necessário que outros modos de conhecer sejam articulados para compreender os OVNIs, não apenas métodos científicos. Assim, “embora não científicos, os melhores dados no momento vêm das testemunhas da ação de ETs avistados no solo perto de suas naves aterrissadas, ou através de suas janelas” (p. 40), reafirmando também a importância dos relatos testemunhais na construção da Ufologia.
Luciano Stancka, ufólogo e psiquiatra, apresentado como um “ufólogo ortodoxo, de linha científica”, também defende que a ufologia deva unir diversas áreas científicas do conhecimento para a construção de uma disciplina mais objetiva e séria:
“Assim como quando os casos ufológicos requerem, deve-se buscar ajuda de especialistas em áreas como astronomia, geologia, biologia etc. Só dessa maneira construiremos uma Ufologia séria e respeitada, feita de pesquisas objetivas e aprofundadas” (GEVAERD (ed.), 2006, p. 93).
O outro eixo de credibilidade mencionado diz respeito à credibilidade do contatado, porque boa parte das evidências coletadas pelos ufólogos são compostas de relatos. Assim, mesmo nos casos em que existem fotografias, vídeos e outros recursos, esses materiais só adquirem sentido completo quando inseridos em uma narrativa fornecida por testemunhas. Diante disso, é preciso que o ufólogo questione o quão “confiável” é a pessoa que relatou essa experiência. Isso implica em trazer à tona diversos aspectos, como profissão, histórico psicológico, estado mental no momento do contato (i.e., estava bêbado ou sob efeito de alguma outra droga?). Por meio desses dados coletados, o ufólogo consegue, em alguma medida, estipular a confiabilidade de um relato, recorrendo a critérios de análise que ele acredita cativar cientistas, como os supracitados.
Por exemplo, J. A. Hynek¹³, astrônomo encarregado de investigar o fenômeno ufológico junto aos militares em meados da década de 50, sob o Project Blue Book, argumenta o seguinte, em seu livro:
Pouquíssimos relatórios são gerados por pessoas mentalmente instáveis. O psiquiatra Berthold Schwarz examinou 3.400 pacientes sem encontrar quaisquer experiências relacionadas a OVNIs. Suas descobertas são amparadas por muitos colegas, que concluíram que há quase uma ausência completa de experiências relacionadas a OVNIs entre pacientes com problemas mentais (HYNEK, 1998, p. 25)¹⁴.
Sobre esse tipo de argumentação, Jodi Dean (1998) comenta:
“Conforme a visão dominante era a de que ver um OVNI sinalizava algum tipo de suspeita de irracionalidade, ufólogos lutaram no mesmo terreno, creditando as testemunhas como tão normais, convencionais e honestas quanto qualquer outro Americano” (p. 42)¹⁵.
Mas esse esforço de convencimento não é travado somente no campo da credibilidade. Mencionei anteriormente que os ufólogos também se engajam em discussões a respeito das evidências e sua produção, de forma que é seguro afirmar que a construção dos discos voadores é contínua e reformulada a cada discussão. Um retorno à história da ufologia nos mostra que, desde o primeiro aparecimento de luzes estranhas no céu, até a constatação (ou popularização da hipótese) de que esse fenômeno era causado por naves extraterrestres, um longo caminho teve de ser percorrido (SANTOS, 2015).
Henry Durrant (1977), por exemplo, destacaria a urgência do debate a respeito da origem desses OVNIs, tendo em vista os contornos institucionais que a questão adquiria mediante a ameaça que isso representava ao controle do espaço aéreo pelo governo norte-americano, sob a orientação do ATIC (Air Technical Intelligence Center):
Para um organismo de informação como o ATIC, a questão que se apresenta então é a seguinte, de extrema importância para os Estados Unidos, principalmente no domínio militar: já que os “discos voadores” existem, qual é a sua origem: soviética ou extraterrestre? (DURRANT, 1997, p. 80).
Vale relembrar que essas preocupações surgiam antes da elaboração do Relatório Condon, principal responsável por pavimentar a posterior marginalização dos estudos de OVNIs. Hoje, entre os ufólogos não há mais controvérsias: um OVNI pode ser extraterrestre. Entre os cientistas, a questão também parece relativamente resolvida: extraterrestres não visitam a Terra e, portanto, esses OVNIs só podem ser outra coisa, algo mais mundano. Dessa forma, encontramos diferentes debates e pesquisas em cada um desses campos.
2. Análise audiovisual
Agora, é preciso dedicar uma atenção especial aos modos canonizados, clássicos, da investigação ufológica, que são as análises de fotografias e vídeos. A fotografia, em primeiro lugar, não envolve fotos de lugares, e sim, em lugares. Nesse sentido, fotografar é uma experiência eminentemente multissensorial, e não simplesmente visual, como poderíamos imaginar. Fotografar é sempre se colocar em movimento, saber o que olhar, o melhor posicionamento e o momento certo de apertar um botão - e o mesmo vale para as filmagens. Essa experiência multissensorial que constitui o ato da fotografia, por sua vez, está intimamente relacionada com um processo amplo de engajamento com o ambiente, o qual Ingold descreve como uma educação da atenção. Assim, entender as fotografias e vídeos de discos voadores sob a abordagem de uma antropologia ingoldiana da percepção sinaliza a relação entre três coisas: as imagens dos OVNIs, a necessidade de uma jornada de aprendizado para interpretá-las e o recurso a outros materiais disponíveis para a investigação. Desse modo, a foto ou vídeo de um OVNI
seria apenas mais um elemento que entra em jogo para a análise do ufólogo a respeito da veracidade ou não de um determinado caso de “avistamento ufológico” e vice-versa, sendo que as fotografias também dependem de outros elementos. Marcas no terreno, relatos de testemunhas, cruzamento de informações e tantos outros detalhes capturam a atenção de um investigador. Munido desse conhecimento adquirido ao longo de sua jornada, ele é capaz de observar uma fotografia de um disco-voador e questionar o que está por trás dela. Posto em outros termos: analisar fotografias de discos-voadores nunca é uma atividade exclusivamente visual e inserir essa análise por parte dos ufólogos dentro da ideia ingoldiana de uma educação da atenção tem como objetivo sinalizar também esse caráter multissensorial dessa ação, além de provocar a reflexão a respeito da necessidade de um aprendizado a fim de se compreender efetivamente esses registros (BORDA, 2022, p. 53).
Portanto, se quisermos compreender o que está em jogo na interpretação do ufólogo de um registro ufológico, não basta considerar somente a foto, ou o vídeo, isolados. É preciso devolver os OVNIs à vida, observá-los em seu ziguezaguear, em suas cores cintilantes, em seu local de aparição. É preciso devolver, enfim, os próprios ufólogos ao seu movimento, à sua valsa sideral junto aos OVNIs que sobrevoam suas vigílias noturnas. Assim, esse material imagético não é o único elemento que entra para estabelecer a Verdade de uma aparição ufológica – aliás, nenhum desses critérios apontados aqui aparece isolado em uma boa investigação de OVNIs.
O relatório é tanto mais completo quanto mais evidências houverem, como uma investigação geológica e botânica para avaliar os efeitos do OVNI no solo, um levantamento de relatos, como já discutimos acima a respeito da avaliação da credibilidade, o uso de registros de radares detectando ou não um objeto aéreo suspeito e, por fim, embora essas passagens não se deem necessariamente nessa ordem (e sim, muito mais simultaneamente), a análise da fotografia ou vídeo.
3. Sistemas de classificação
Talvez o mais conhecido sistema de classificação desenvolvido pelos pesquisadores de OVNIs e seus ocupantes seja o sistema de contatos imediatos, dividido em uma sequência numérica de graus, utilizado para classificar a interação estabelecida entre o OVNI, ou alienígena, e o observador. Tal sistema se inicia no “contato imediato de zero grau”, quando ocorre uma visualização pouco conclusiva do objeto, e se estende até o “contato imediato de sétimo grau”, quando o contato resulta na produção de um indivíduo híbrido, parte humano, parte extraterrestre¹⁶. É possível encontrar, no entanto, algumas variações nessas classificações, uma vez que a contagem pode iniciar já no grau 1, desconsiderando a distinção entre um avistamento que permite distinguir detalhes a respeito do OVNI e outro, que permaneceria opaco e distante, e também porque é comum agrupar sob um mesmo grau interações que, em outras situações, seriam diferenciadas.
É por meio dessas interações entre humanos e alienígenas que a ufologia coleta algumas das principais pistas para compreensão do fenômeno UFO. Nesse sentido, o sistema de contatos imediatos é um ponto de partida para o desenvolvimento de boa parte das pesquisas nessa área. Ao estabelecer o tipo de contato que o relatante teve com esses seres, o ufólogo direciona seu caso. A coleta de evidências na ufologia científica, mostra-se, desse modo, muito mais inclinada à busca de elementos que somem ao arcabouço de pistas do comportamento extraterrestre e suas intenções, do que ao da busca por provas cabais da existência de alienígenas - conclusão, aliás, quase sempre tomada como uma verdade pré-estabelecida. A ciência dos ufólogos, é um estudo dos discos-voadores e extraterrestres, antes de ser uma tarefa de convencimento dos céticos, embora isso seja uma parte paralela relevante do ofício ufológico.
O sistema de classificação de raças extraterrestres, ou tipologia extraterrestre, é bastante ilustrativo a esse respeito. Apesar das variações nessa sistematização por parte de uma ou outra discordância entre os ufólogos, o livro Tipologia dos Humanóides Extraterrestres: estudo científico comparativo da morfologia e comportamento das entidades alienígenas em visita à Terra (1991), de Jader Pereira, se destaca como referência entre os ufólogos científicos, porque parte de uma padronização sistemática, baseada em mais de 200 descrições de seres extraterrestres, obtidas por meio de relatos pessoais. Para além de uma pura descrição morfológica das características desses viajantes interestelares, no entanto, o referido estudo pretende estabelecer, a partir desses relatos, um padrão comportamental de cada um dessas raças, operação recorrente. Assim, o autor traz, na caracterização da espécie extraterrestre, apresentada na figura 1, a associação com um “comportamento cuidadoso”.
A associação entre uma raça extraterrestre e um padrão de comportamento observado durante interações de humanos com ela, permite aos ufólogos propor explicações quase antropológicas das motivações da ação alienígena. Não é incomum, portanto, que certos tipos de ETs sejam tomados como criaturas vis, frias e invasivas, cientistas objetivos que tratam o ser-humano como um rato de laboratório, enquanto outras raças seriam vistas como antropólogos galácticos, interessados em aprender nosso estilo de vida e cultura, “que não se envolvem, mas apenas estudam nossa espécie para adquirir conhecimento a respeito de outras formas de vida inteligente” (HASTINGS, 2013, p. 39). Penso que esses últimos fornecem um contraponto importante com relação aos alienígenas, por exemplo, descritos no livro Guerra dos Mundos, de H.G. Wells, cuja famosa introdução cabe retomar:
“No one would have believed in the last years of the nineteenth century that this world was being watched keenly and closely by intelligences greater than man’s and yet as mortal as his own; that as men busied themselves about their various concerns they where scrutinised and studied, perhaps almost as narrowly as a man with a microscope might scrutinise the transient creatures that swarm and multiply in a drop of water. With infinite complacency men went to and fro over this globe about their little affairs, serene in their assurance of their empire over matter. It is possible that the infusoria under the microscope do the same”.
Tudo se passaria como se o avanço tecnológico prescindisse de um avanço moral e ético, mas apenas do ponto de vista dos humanos, do ufólogo que tenta entendê-los. Para os cientistas extraterrestres, afinal, não seríamos mais do que organismos microscópicos em um tubo de ensaio, criaturas transientes que se multiplicam em uma gota de água.
A esse respeito, presenciei a seguinte discussão em um grupo de ufólogos no whatsapp, cujos nomes dos participantes optei por ocultar, bem como optei por preservar eventuais erros de ortografia ou digitação:
J: Alguém aqui tem pena do Extraterrestres? Eles abdusem as pessoas, faem humano e animais de cobaia, já mataram sabe lá quantos humanos, gado e sabe lá quais as suas intenções, se fossem do vem [bem] mesmo já teriam dado as caras de alguma forma pra manter algum contato com boas intenções, eu acho que não, e mais se a gente não descobri logo uma maneira de descobrir seus objetivos nossa raça é que pode ser extinta!
R: Se existem várias raças visitando o planeta deve ter os bons e os maus. A raça humana hoje será merecedora de algum contato?
(...)
C: No meu ponto de vista, já estudaram os humanos o suficiente, eles possuem os meios pra nós destruirem, sabemos muito bem disso, o mistério é porque já não fzeram?
Há outro motivo!
J: Há vários
Talvez eles tenham que introduzir sua espécie com a nossa para viver aqui, isso pode explicar as abduções, estão se misturando com os humanos para serem capazes de se adapta ao nosso meio ambiente!
R: Verdade, só mandarem um vírus mortal, um tsunami, terremoto..... e já era.
O ufólogo Rafael Amorim sintetiza o problema da seguinte maneira: “Temos informações suficientes, geradas por grandes cientistas, para sugerir que a raça humana esteja sendo monitorada por formas positivas e negativas de ETs – depende de nós decidirmos se tais inteligências respeitam nosso livre arbítrio”¹⁷. Sem dúvida, isso altera a natureza do debate, porque indica a importância do ser-humano quanto à caracterização das ações desses ETs. No fundo, se estamos sendo estudados por antropólogos ou por cientistas, ou seja, se seus métodos são puramente especulativos ou invasivos, essa decisão caberia ao próprio humano estudado:
Mas eles respeitam as tradições proféticas dos direitos e do conhecimento humano? Se não o fazem, então não devemos tomar parte dos trágicos experimentos de abdução, se pudermos. Em contrapartida, existem casos de contato direto e íntimo que foram examinados e que indicam uma consequência positiva através da virtude da participação livre (Idem, p. 15).
4. Trabalho de campo
Ubirajara Rodrigues, principal ufólogo envolvido na investigação do caso do ET de Varginha, faz parte de um segmento de ufólogos da linha científica que reconhece a necessidade de produção de evidências e sua articulação para produzir um convencimento da comunidade científica acerca da validade do trabalho ufológico. Por isso, comenta com entusiasmo a respeito de um grupo de cientistas, liderados pelo físico Peter Sturrock, da Universidade de Stanford, que supostamente teriam estudado a questão dos OVNIs na ocasião de um painel sobre o tema, indicando o princípio de uma aceitação científica do tema:
As evidências preferidas pelo grupo foram fotografias e relatórios de policiais, consideradas como indícios da realidade dos fatos. Nota-se que, como não poderia deixar de ser, os aspectos físicos do fenômeno, bem como a pressuposta isenção e idoneidade de testemunhas, continuam a ser prioritários, demonstrando-se assim que oficialmente as ciências ainda se encontram nos primeiros passos de aceitação dele. O que leva à conclusão de que os ufólogos permanecem na fase de convencer a Ciência de que a coisa merece respeito e atenção, servindo à desilusão daqueles que acreditam estarmos já em níveis de aprofundamento ou até de regulamentação das atividades de ufólogo (RODRIGUES, 2000, p. 158-9).
Essa compreensão da centralidade do trabalho do pesquisador na construção da ufologia enquanto tema legítimo tem suas consequências práticas no desenvolvimento da investigação de Ubirajara do ET de Varginha. Os detalhes relevantes dessa história, para nossos propósitos, serão apresentados ao longo da argumentação, mas não passarão de um breve resumo¹⁸, com o objetivo simples de situar o leitor dos acontecimentos.
Em 1996, um disco-voador caiu em Varginha. Esse detalhe, porém, permaneceria marcado por controvérsias: teria caído ou pousado? Algo que, à primeira vista, soa como um preciosismo argumentativo, um cuidado excessivo com o uso das palavras, marca uma diferença essencial, que ilumina explicações distintas a respeito das intenções dos extraterrestres na Terra. Essa controvérsia é inflada quando, cerca de 10 meses após o suposto aparecimento do ET de Varginha, o ufólogo espanhol, Juan José Benítez, resolve visitar a cidade, onde faz uma descoberta que agita a comunidade ufológica.
Já na região, após alguns dias investigando os principais locais onde foram relatados os encontros com as estranhas criaturas – que, a essa altura, já haviam sido identificadas como “extraterrestres” pelos ufólogos –, Benítez anuncia sua descoberta: três marcas deixadas pelo pouso de uma espaçonave, formando um triângulo. No entanto, o fato dela ter acontecido logo abaixo dos narizes dos ufólogos brasileiros gerou considerável desconfiança, afinal, o local já havia sido revirado diversas vezes pelos mais diferentes pesquisadores de OVNIs – que, aparentemente, teriam deixado a evidência passar despercebida.
As marcas em questão foram encontradas em um pasto, próximo a uma linha férrea, local em que se acredita ter sido capturado o primeiro extraterrestre, na manhã de 20 de janeiro de 1996. Das três, duas marcas tinham um formato cilíndrico, enquanto a terceira, foi identificada como algo próximo de um retângulo (conferir as figuras 2 e 3). As marcas cilíndricas, no entanto, aparentavam terem sido feitas a partir do engenho humano: uma faca, ou quem sabe uma pequena pá. Diante disso, ufólogos convidaram um agricultor local, mas também físico, formado pela UFMG, para analisar as marcas. Além dele, um engenheiro também foi convocado a prestar sua análise.
A conclusão é exatamente a que se supunha: as duas cavidades cilíndricas não passavam de dois buracos abertos por alguém que se utilizara de uma cavadeira! Uma ferramenta de cabo duplo, com lâminas em forma de colher, também duplas, própria à abertura de buracos para a instalação de mourões de cerca. E a terceira, mais rasa, é simplesmente a depressão deixada pela retirada de um cupinzeiro. Cumpre salientar que ao lado de ambas as marcas ainda eram bem visíveis as bases dos montes da terra retirada para abertura dos buracos, depositados ao lado de cada um deles. Com folhas de grama por baixo, de idade antiga, amassadas pelo peso da terra (RODRIGUES, 2000, p. 130-1).
Porém, o ufólogo espanhol tinha uma carta na manga: somado a esse achado geológico, ele ainda relatou a descoberta de insetos queimados no interior das marcas, algo que, segundo os ufólogos, pode ser encontrado em locais de contato com discos voadores. Mas, não só os insetos, como o local todo parecia queimado e, próximo ao triângulo, uma árvore desidratada e seca parecia corroborar a teoria de que ali pousara um legítimo disco voador.
As críticas ao espanhol, porém, permaneciam. Em nota, Benítez tentou se defender das acusações, pedindo paciência com relação à demora na preparação do laudo. Segundo ele, diversas amostras colhidas no local teriam sido encaminhadas para cientistas das mais diferentes universidades da Espanha.
“Quanto às amostras recolhidas, como digo, prefiro que sejam os peritos das universidades quem se pronunciem a respeito. Só desejo adiantar que eu nunca disse que a árvore próxima das marcas aparecera queimada, e sim que apresentava claros sinais de descascamento, o que não é a mesma coisa.
Aqueles que me conhecem sabem bem que não é meu costume desprezar ninguém. E menos ainda os investigadores do Brasil. A prova é que, ao voltar para São Paulo, coloquei o senhor Covo¹⁹ a par do assunto. Desde já peço perdão por haver descoberto algo que aos outros passou despercebido. São os ossos do ofício” (BENÍTEZ apud RODRIGUES, 2000, p. 134).
Mas foi apenas em abril de 1998 que veio a público o laudo, intitulado “Análises de Assentamentos, Marcas de OVNIs no Brasil”, elaborado pela Vorsevi S.A. Ingenieria y Control de Calidad. O objetivo do relatório era determinar a possível carga de peso que poderia ter sido despendida para produzir instantaneamente essas marcas, por meio de diferentes técnicas, tais como granulometria, limites de Atterbert e ensaio edométrico remodelado. A iniciativa, porém, não foi recebida com unanimidade entre os ufólogos, como Ubirajara citou em uma paráfrase, em referência aos comentários de outro pesquisador: “Desse jeito até eu provo que pousou um disco voador, em qualquer parte do mundo...” (Idem, p. 138).
Tais ufólogos viam falhas metodológicas importantes na escolha dos testes propostos por Benítez. A indeterminação deles deixava aberto um espaço gigantesco para ser preenchido com a imaginação acerca do agente causador dos buracos, pois a conclusão do laudo foi que seria necessária uma carga de 26 toneladas, embora o objeto causador pudesse ter sido o mais variado possível.
Benítez clamou ainda a posse de laudos de duas universidades espanholas indicando que a tal árvore desidratada havia sido exposta a uma temperatura de cerca de 1000 graus. A morte dos insetos, de acordo com os supostos laudos, também era igualmente misteriosa, já que não fora causada nem por agrotóxicos, e nem por inseticidas. Supostamente, meses após suas mortes, eles sequer apresentavam os sinais esperados de putrefação. O referido laudo, porém, nunca foi divulgado por Benítez, o que certamente enfraqueceu suas alegações. Não bastasse isso, Ubirajara Rodrigues foi capaz de identificar problemas importantes a respeito do relatório anterior que, segundo ele, enfrenta um problema conhecido no meio ufológico como “alegação da foto autêntica”:
Ora, há uma conhecida estória na Ufologia, chamada de “a alegação da foto autêntica”, que se assemelha a esse caso. Segundo a estória, alguns ufólogos argumentam que solicitaram um laudo da Kodak, por exemplo, para verem se uma foto ufológica é autêntica. Suponhamos, então, que alguém tire uma foto de um prato jogado para o ar e a submeta, com negativo, cópia de primeira geração etc, ao laboratório da Kodak. Evidentemente, o laudo que virá atestará, sem dúvida, a autenticidade da fotografia. Ou seja, que não há montagem, superposição de imagem ou outros truques, inclusive de laboratório. Mas a foto, esta sem dúvida, só pode ser autêntica. Quer dizer: o que a Kodak tem a ver com discos voadores? Nada. Solicitaram a análise de uma fotografia e esta, portanto, é autêntica. Só não perguntaram se foi mesmo um disco voador fotografado ou um prato jogado para o ar (RODRIGUES, 2000, p. 138).
Independentemente dessas provas não terem sido validadas para compor a construção do ET de Varginha, em particular, esses debates nos são valiosos para ilustrar as discussões empreendidas pelos ufólogos nesse sentido. Servem também como ilustração de um outro aspecto defendido nesse texto: os ufólogos se respaldam em diagnósticos científicos de diferentes formas e isso gera debates fundamentais para o processo de construção dos discos-voadores a depender das posições assumidas por esse ou aquele pesquisador, o que também torna extremamente complexa qualquer generalização nesse sentido.
Considerações finais
Nesse artigo, tentei apenas indicar as técnicas principais pelas quais os ufólogos se aproximam “cientificamente” dos discos voadores, tomando tal “cientificidade” em seu uso nativo - cujas características foram gradualmente discutidas ao longo do texto -, e não necessariamente em concordância com o uso que os cientistas, por outro lado, fariam disso. Ao optar por levar a sério a reivindicação de cientificidade dos ufólogos e delinear os efeitos práticos da retórica científica na sua metodologia, os aspectos metodológicos, pudemos propor aqui que a ciência da ufologia científica é uma que se constrói continuamente a partir da multiplicação de aliados, ao invés de tentar desmascarar uma suposta incompreensão do verdadeiro significado de ciência. A ciência dos discos voadores é, desse modo, uma que se constrói pontualmente em contato com a atividade alienígena, e que depende não só dos ufólogos, mas dos próprios ETs e discos voadores, que se deixam capturar por câmeras, marcam o solo, abduzem pessoas, observam, experimentam, como na ideia discuta de ativação das linhas de propagação (ALMEIDA, 2015). Assim, a ufologia científica não é necessariamente uma “ciência” no sentido que alguns cientistas poderiam tomá-la, em um sentido “oficial”, mas uma forma alternativa de conceber a atividade científica. Não obstante, ela deve ser levada a sério, o que não significa aceitá-la, mas justamente testá-la, experimentá-la e experimentar com ela.
Lista de figuras

Figura 1 - Ilustração e descrição de um tipo de extraterrestre, retirada de (PEREIRA, 1991, p. 7)

Figura 2 - Imagem retirada do livro de Ubirajara (2000) mostra o sítio delimitado por Benítez, onde foram observadas as marcas do pouso do OVNI.

Figura 3 - Fotografia registrada pelo próprio Benítez, retirada do livro de Ubirajara (2000), evidenciando as marcas deixadas pelo pouso de um OVNI.
Referências bibliográficas
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PEREIRA, Jader. Tipologia dos Humanóides Extraterrestres: estudo científico comparativo da morfologia e comportamento das entidades alienígenas em visita à Terra. Campo Grande: CPDV, 1991.
RODRIGUES, Ubirajara. O Caso Varginha: Pela primeira vez revelada a história completa sobre a captura de estranhas criaturas no Sul de Minas Gerais. Campo Grande: CBPDV, 2001.
SANTOS. Rodolpho dos. A Invenção dos Discos Voadores. São Paulo: Alameda, 2015.
Notas de fim
¹ Meus agradecimentos ao CNPq pela concessão de uma bolsa de iniciação científica, que permitiu a execução dessa pesquisa.
² Disponível em : <https://news.gallup.com/poll/350096/americans-believe-ufos.aspx>. Acesso em 09/07/21.
³ A “Ufologia” é o estudo dos UFOs, que nada mais é do que a variação em língua inglesa da sigla OVNI. Ufólogos, portanto, são aqueles que estudam o fenômeno ufológico, os alienígenas e sua ação na Terra.
⁴ Esse argumento, porém, tende a estabilizar demais a noção de uma “substância científica”, como se os ufólogos emulassem apenas a retórica, os discursos, as palavras, deixando de lado essa suposta substância, aparentemente intrínseca à Ciência, um ponto delicado na ideia apresentada pela autora por uma série de fatores já discutidos em outro momento (cf. ALMEIDA, 2015).
⁵ Endosso, no entanto, a posição da autora a respeito da crítica à ciência, no interior da prática ufológica, ao mesmo tempo em que isso condicionaria uma certa ambivalência entre ufologia e ciência, contanto que entendamos que só o é aparentemente, uma vez que não é necessariamente “ciência”, na definição “oficial” que se poderia adotar.
⁶ A publicação do relatório marca um episódio importantíssimo na história da ufologia, pois decreta o encerramento de uma série de programas governamentais de estudo dos OVNIs, ao redor do mundo. Sua conclusão foi: “nada pôde ser extraído do estudo de OVNIs dos últimos 21 anos que agregasse ao conhecimento científico. Uma consideração cautelosa dos registros, conforme estão disponíveis para nós, nos leva a concluir que um subsequente estudo extensivo dos OVNIs não se justifica mediante a expectativa de que a ciência
avançará com isso.” (apud DEAN, 1998, p. 38, tradução livre)
⁷ Aqueles que tiveram contato com OVNIs e extraterrestres, seja direto, como em uma abdução, seja indireto, como em um avistamento no céu.
⁸ Os quais a autora chama de “contactees, channelers, hoaxsters, and ‘nut cases’” que, em tradução livre, seria algo como os “contatados, canalizadores, farsantes e ‘casos de doido’”: “Admittedly, the UFO discourse is highly elastic, occupying a variety of registers and positions. But containing, binding, or policing these various registers is one of the ways the discourse replicates “real” science and establishes its own objectivity. Although UFO researchers are often derided for their infighting, the factionalism in ufology is no more dramatic than in standard academic disciplines. Mainstream science separates itself from the discourse around UFOs. Serious ufologists distance themselves from contactees, channelers, hoaxsters, and “nut cases.”
⁹ O vídeo completo de divulgação desse curso pode ser acessado no Youtube. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=o0G8a4jHvig&ab_channel=AdemarJoseGevaerd>. Acesso em 23/11/2020.
¹⁰ Esse é um trecho selecionado e editado do diálogo, uma vez que inúmeros assuntos paralelos eram articulados durante o transcorrer, com diversas outras pessoas participando em um verdadeiro festival democrático. Os nomes também foram substituídos por letras para preservar a imagem dos envolvidos.
¹¹ Embora isso seja verdade, já observei situações nas quais os ufólogos se distanciavam momentaneamente dessa busca incessante pela produção de evidências, sob o argumento de que já possuem a verdade acerca dos
OVNIs, portanto, esse trabalho não seria mais tão atraente. No entanto, isso é apenas momentâneo, pois as controvérsias logo aparecem entre os próprios ufólogos e entre ufólogos e cientistas, demandando uma defesa mais enfática e sólida a respeito do tema.
¹² “Ianuzzi, portanto, tem um considerável currículo que certamente atende às exigências da chamada corrente científica da Ufologia” (TICHETTI apud IANUZZI, 2013, p. 17).
¹³ Hynek é considerado por muitos ufólogos como um dos fundadores da disciplina por causa de suas pesquisas pioneiras junto ao governo norte-americano e seus diversos livros publicados sobre o tema.
¹⁴ Tradução livre. No original: “Very few reports are generated by mentally unstable persons. Psychiatrist Berthold Schwarz examined 3.400 mental patients without finding experiences related to UFOs. His findings are supported by many colleagues, who found that there is an almost complete absence of UFO-related experiences among mental patients”.
¹⁵ Tradução livre. No original: “Since the dominant view was that seeing a UFO signaled some kind of suspect irrationality, ufologists fought on the same terrain, making the witness as normal, conventional, and upright as any true-blue American.”
¹⁶ Disponível em: <https://www.ovnihoje.com/2019/01/08/quais-sao-os-tipos-de-contatos-imediatos-com-alienigenas-para-quem-nao-sabe-ou-nao-lembra/>. Acesso em 09/08/21.
¹⁷ Disponível em: <https://ufo.com.br/artigos/o-significado-da-acao-alienigena-na-terra.html>. Acesso em 10/08/2021.
¹⁸ Não tenho competência para narrar aqui com precisão os eventos que se sucederam naquele ano, em Varginha. Ufólogos, mais habilidosos do que eu nesse tipo de tarefa, já trataram de registrar essa história de formas mais completas e interessantes do que eu sequer poderia. Então, caso haja o interesse, a própria obra de Ubirajara, já referenciada, pode servir a esse fim. Por ora, basta apenas sublinhar o quadro geral do Caso ET de Varginha.
¹⁹ Claudeir Covo (1950 – 2012) foi um ufólogo, engenheiro eletrônico de formação, conhecido por sua aproximação com a linha “científica” de pesquisa dos OVNIs, e que auxiliou Benítez nessa fase preliminar de investigação, logo quando chegou à cidade de Varginha.
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