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Quando deixas de comer

  • Rodrigo da Silva Rocha
  • 18 de set. de 2023
  • 2 min de leitura

O ensopado esfriou. Encheu de moscas. Vermes, coisas nojentas. Vejo riscos

brancos nele. Parecem fisicamente estáveis, mas quando reparo de perto, observo

micro-contrações e movimentos que aparentam ser involuntários.

Contra-movimentos; instabilidade.


O ensopado esfriou. Como esfriaria qualquer ensopado que fosse deixado ali.

Esperando, solene, na calada e úmida noite fria. Mas pela temperatura tão somente não apodreceria. Sua degeneração material teve por agente o estado imaterial da espera.


O ensopado esfriou, uma vez que esperou. Noites, dias, estações. Ali ficou, esfriou!

E o que mais posso dizer agora, senão que esfriou o maldito ensopado?


Mandioca, tempero, fubá, cebola e salsa. Tudo frio, podre, com um cheiro azedo e

uma leve camada alva mofada cobrindo a mais extrema superfície do ensopado.

Deste frio ensopado.


Esperei muito tempo até que viesse prová-lo. Não me atrevi a tirar o prato. Se

viesses, não terias o que comer, então servi a mesa e aguardei seu faminto retorno. E a essa altura eu já me sentia tão farto e bem alimentado.


Mas o ensopado esfriou. E não mais é suficiente que eu o jogue aos bichos. Estes

morreriam, e o verme que corrói o osso do carneiro do ensopado corroeria também aos que recebessem-no respingado. Egoísmo, ódio, mandioca, alho e coentro.


A mesa está vazia. Quase vazia. Se não fosse a cadeira-madeira à frente, bem

rente, à mesa em que me sento. Não isento da culpa. Devia eu tê-lo engrossado

mais ao fogo? Teria eu errado no sal? Não importa. Você não provou a sopa. Ou a

expectativa escatológica de sua vinda... colossal.


Colosso. Neste timo ardente em que o germe arranca partes daquele osso que

outrora te pertenceu. E que agora compõe a natureza morta do frio ensopado

servido com pão. Nesse ensopado que não é mais teu, nem meu.


Não sou de lamentar o prato desperdiçado. Tal qual o derramado leite que mainha dizia. Mas quando você não veio, e não tomou a sopa que era tua, e somente tua, fiquei sem tempero, sem fubá, sem salsa, sem mandioca e sem o prato. Este gélido prato branco moldado em cerâmica.

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